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sábado, 14 de maio de 2011

AS FACES DE D. JOÃO



A concepção da realeza sagrada e maravilhosa vigente na Idade Média se fundamentava em uma série de crenças, mitos, lendas e ritos que tenderiam a desaparecer, ao menos teoricamente, com o desenvolvimento das bases racionais na nova ordem política do mundo ocidental. Porém, mesmo após Descartes, Galileu, Locke e Newton, e a revolução científica que promoveram, manteve-se, por exemplo, a crença na existência de um elo direto entre a divindade e a monarquia, o que representava uma forma de sobrevivência daquele pensamento no campo político. No absolutismo, os reis ainda tomavam o lugar de Deus, eram as suas imagens vivas e considerados verdadeiros representantes da majestade divina.
No quadro europeu do último quartel do século XVIII, o absolutismo apresentava-se como uma ordem política francamente contestada, mas D. João sobreviveu como monarca absoluto até 1821.
Ainda que a propaganda, como se compreende hoje, seja um conceito muito moderno, o poder real mantinha uma forma de atuação perfeitamente adequada a tal termo. Para Maquiavel, governar era fazer crer e considerava-se a opinião pública e a propaganda, ou seja, os meios utilizados para adequá-la a fins concretos, como uma estratégia em que os significados servem para reforçar as relações de dominação.
As representações do rei eram encomendadas para aumentar a sua glória, transmitir segurança e estabilidade. Essas representações imagéticas, porém, nunca foram ingênuas e sempre revelaram intenções diferentes por parte de seus autores.
É muito vasta, por exemplo, a iconografia alusiva à partida de D. João para o Brasil, sendo particularmente interessante, e profícua, a comparação entre exemplares de diferentes tipologias, autores de nacionalidades diversas etc.
A gravura de Francesco Bartolozzi intitulada A Partida do Príncipe Regente, baseada em um desenho de Henry L´Evéque, registra os atropelos da partida: no plano fronteiro, à esquerda, observa-se um grupo composto, na sua maioria, de mulheres e crianças, todas muito próximas umas das outras e voltadas para o rei em um gestual de súplica, algumas inclinando-se e com as mãos estendidas. À direita, no mesmo plano, cercado de súditos, todos esboçando algum movimento, alguns se prostrando de forma reverencial, ressalta D. João atencioso às saudações. Na cena destacam-se carruagens. Aquela que aparece no plano médio revela sua lotação sobrecarregada. Todos os outros elementos imprimem à imagem uma conotação de um grande tumulto: além das carruagens e cavalos, alguns deles visivelmente em grande velocidade, tendas, caixotes entulhando o espaço. O céu, toldado por nuvens escuras, sugeria o prenúncio de uma grande tempestade.
Ainda que radicados em Portugal, os autores estrangeiros, de nacionalidade italiana e francesa, são mais livres e críticos em suas formas de representação do evento. Assim, o rei é apresentado como uma figura roliça e de estatura normal, quando o título da obra, A Partida, transmite uma ideia de ruptura.
O mesmo episódio foi representado por alegorias produzidas por artistas de prestígio que, de forma metafórica, louvavam o rei, ou justificavam sua partida, trazendo à cena musas para o elogio de suas virtudes, ou ainda a Providência, na forma de uma linda mulher, apontando-lhe o Atlântico numa referência ao Brasil.
Neste campo, destaque especial merece a obra de I. A. Marques que apresenta, no centro de um dramático desenho representativo da crítica situação vivida por Portugal, o busto do príncipe sobre um pedestal monumental, ladeado pela Providência e pela Justiça, tendo à sua frente, de joelhos, a representação da guerra. Os outros elementos metafóricos de destaque são a Deusa e o Livro da Sabedoria, que irrompem com grande luminosidade do interior de nuvens muito escuras, de onde partem também dois grandes fachos de luz, um deles incidindo sobre o príncipe e o outro sobre as embarcações principais assinaladas ao fundo da cena. No entanto, o registro mais importante relaciona-se à fisionomia do príncipe, representado de maneira geral com o rosto sem expressividade marcante. Neste caso, é digno de nota o olhar de esguelha e o sorriso esboçado, ligeiramente maroto, que emprestam à face do príncipe um ar sagaz e irônico. Ainda que a alegoria constitua-se de uma forma metafórica para expressar um pensamento sobre a forma figurada, nesse caso, reforçando essa intenção e explicitando seu objetivo específico, abaixo do desenho escreveu-se: a fortuna de Napoleão tem o limite marcado no momento, em que um Príncipe, se decide a atravessar o Oceano.
A questão da aparência física de D. João tem sido destacada de forma recorrente nos estudos que envolvem o real personagem.
Depois do clássico livro de Oliveira Lima muitos autores preocuparam-se em reabilitar a imagem de D. João, inclusive em seus aspectos físicos, transformando uma questão inteiramente secundária, do ponto de vista historiográfico, em um assunto ressurgido e no que dizia respeito ao real personagem.
A iconografia joanina é farta e significativa. Entre as mais importantes representações inanimadas do rei estavam os retratos cuja produção era estimulada pelas oficinas de gravura existentes em todas as grandes cidades europeias. Na época, tornou-se moda a exibição das imagens de nobres e, particularmente, dos membros das casas reinantes na Europa em espaços públicos e salões residenciais. Com isso, aqueles estabelecimentos comercializavam as reproduções em série.
Os retratos oficiais de D. João, de autores e períodos diferentes, comprovam que mesmo protegido pelos cânones da pintura áulica, sua figura, com o tempo, foi se tornando mais obesa, porém desde a juventude anunciava-se esta característica.
A reprodução de traços faciais demonstra também, por outro lado, que se não compõe um tipo destacado de beleza, por outro lado não justifica uma conotação de físico desfavorável atribuída ao real personagem, de forma recorrente, mesmo em estudos acadêmicos.
É importante perceber que a imagem do soberano, produzida por autores de diferentes nacionalidades, favorece a abordagem comparativa, uma vez que é representada com variáveis acentuadas em relação aos traços que se reproduzem em seus retratos oficiais.
O acervo da Biblioteca Nacional é riquíssimo e expressivo, evidenciando uma variada apropriação da figura de D. João, com intenções diversas e para consumidores diferentes.
As diferenças são tão acentuadas e evidentes que se não fossem referenciadas a D. João VI, nas respectivas legendas, não se poderia crer que representavam o mesmo personagem. É importante ressaltar que cada uma delas reproduz entre si as profundas diferenças que apresentam em relação à imagem oficial.
Assim, pode ser representado portando veste militar e apresentando ar marcial, lembrando um almirante inglês.
O casamento do príncipe herdeiro, D. Pedro, com a princesa Leopoldina, filha do imperador austríaco, fez crescer o interesse pelo rei português, que enfrentou Napoleão e estabeleceu-se no Brasil, e artistas tentaram representá-lo de perfil, penteado à moda austríaca da época.
Algumas representações, porém, sobretudo de autores franceses, o enquadravam como um tipo fortemente mediterrâneo, tez morena e cabelos curtos encaracolados e outras, ainda, com essas últimas características tão acentuadas como próprias de um mestiço.
Importante ressaltar, além disso, que a maioria dos retratos refere-se a D. João como rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, pois desde 1809 já existem referências específicas aopríncipe regente de Portugal e domínios brasileiros, e a partir de 1826 destaca-se sua condição deimperador do Brasil e rei de Portugal e Algarves.

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